O aluno que inseriu na redação do Enem a receita do miojo deixou um recado claro: a receita de escola desandou.
No passado a escola era um espaço físico, dedicado à aquisição de
conhecimentos certificáveis, que só os professores detinham. O professor
era um profissional supostamente capaz de saber o quê e como ensinar.
Os ritmos escolares balizavam o tempo desse aprendizado que se sucedia
ao longo de anos. Todas essas premissas estão postas em questão.
Enquanto a escola pública tenta compensar suas imensas deficiências
construindo prédios, aumentando matrículas e o número de professores em
sala de aula, condição sine qua non de qualquer progresso, o que se
passa dentro dos muros da escola entre alunos e professores é desolador.
O episódio da receita do miojo, temperada com pitadas de deboche e
altas doses de descrença, é testemunha desse descalabro.
Uma mudança de era deu lugar a um abismo geracional que separa
professores e alunos, minando as relações de admiração e respeito que,
no passado, estimulavam o desejo de aprender. Os professores estão hoje a
cavaleiro entre dois tempos; um passado em que conteúdos eram
transmitidos de uma forma que hoje chamaríamos tradicional; um presente
em que os alunos, digitais nativos habitam, fascinados, o espaço virtual
como vida real e são habilíssimos em tecnologias que os professores mal
dominam.
Quando todos os alunos frequentarem as aulas, quando houver
professores suficientes, recebendo um salário decente, ainda restará a
incômoda questão do que lhes ensinar. Um livro de respeitáveis
pesquisadores franceses ostenta o título inquietante: “Ainda é preciso
aprender?”
A virtualidade é o meio ambiente de uma juventude portadora dessas
próteses cerebrais que são os celulares, prolongamentos de seus corpos,
onde trazem armazenada — Google dispensando o trabalho da memória — toda
a informação do mundo. Fotografam tudo que se passa como que deixando
provas tangíveis do que é vivido em tempo real, marcando o instante, sem
apelo à abstração da memória, seus caprichos e brumas. Como tudo é
registrado sem esforço, é o próprio esforço que se torna um
comportamento raro e desvalorizado, o que representa um perigoso efeito
colateral. Entre alunos e professores há distância e estranhamento. Por
vezes, agressividade.
A pletora de informações que cada um acessa quando tira o celular do
bolso não implica que os jovens tenham a mínima ideia do que fazer com
elas ou, pior, que saibam a diferença entre informação e conhecimento. A
aquisição de conhecimento depende do desenvolvimento de aptidões
mentais e do domínio dos códigos culturais que permitem navegar com
alguma coerência em um oceano de informações desgarradas. As informações
disponíveis na internet são um tesouro literalmente incomensurável.
Problemática é a exígua capacidade de processá-las e lhes dar algum
sentido.
Assim como a palavra ganha seu sentido no texto e o texto ganha
sentido em um contexto, a informação pede para se inserir em um
patrimônio cultural que caberia à escola transmitir. A contextualização é
condição da função cognitiva ao mesmo título que a consciência de ter
aprendido, tão cara ao grande Jean Piaget.
É a transmissão do patrimônio cultural e de valores que dão à
juventude o sentido de pertencimento à aventura humana e estabelecem os
vínculos de continuidade entre as gerações que se sucedem. Tarefa
essencial em tempos moldados e irrigados pela tecnologia que permite a
cada um construir um mundo próprio — o que pode ser uma rica experiência
se conectada a um pertencimento mais amplo — mas pode ser também o
deslizamento para uma forma velada de antissociedade, um aglomerado de
indivíduos autorreferentes cuja comunicação não passa por uma
experiência ou memória comum e se tece apenas com os laços esgarçáveis
da banalidade.
O desafio da educação é a formação de indivíduos aptos a pensar pela
própria cabeça, capazes de transformar informações em conhecimentos,
abertos à inovação e experimentação, afeitos à argumentação e escolha. O
que Edgar Morin chama “uma cabeça bem feita”.
A vida em tempos de internet exige da escola uma metadisciplina, o
aprender a aprender. Quem serão os professores dessa escola aberta ao
desconhecido, sob forma de pesquisa, e ao inesperado, sob forma de
criação?
Não há receita pronta de escola e sim ingredientes a combinar: a
aquisição de conteúdos específicos com o aprendizado de competências
transversais que permitam aos jovens dar sentido a si mesmos e a um
mundo em que terão vida longa e as certezas curta vida.
Rosiska Darcy
O Globo, 30/03/2013
no site
http://riocomovamos.org.br/rosiska/?p=190