sábado, outubro 17, 2009

O termo multiculturalismo

Atenção turmas do 2º ano!

Faço sugestão para leitura:

Multiculturalismo ou de como viver junto

Mary Del Priore - Historiadora e Coordenadora Geral do Arquivo Nacional.

1. Multiculturalismo: como viver junto?

Nas democracias pluralistas, assistimos a um movimento generalizado de incremento das identidades particulares. Minorias, populações autóctones, grupos de migrantes e imigrantes manifestam seu desejo de reconhecimento cultural. "Viver junto" é uma questão cada vez mais premente.

O termo "multiculturalismo" designa tanto um fato (sociedades são compostas de grupos culturalmente distintos) quanto uma política (colocada em funcionamento em níveis diferentes) visando à coexistência pacífica entre grupos étnica e culturalmente diferentes. Em todas as épocas, sociedades pluriculturais coexistiram e, hoje, menos de 10% dos países do planeta podem ser considerados como culturalmente homogêneos. Por outro lado, o tratamento político da diversidade cultural é um fenômeno relativamente recente.

Há menos de trinta anos, as primeiras medidas políticas de inspiração multiculturalista foram colocadas em ação na América do Norte (Canadá e EUA). Lá, a indiferença frente à cor da pele foi substituída pelo princípio de consciência da cor. O debate sobre multiculturalismo foi crescendo de intensidade e, a partir dos anos 90, difundiu-se na Europa e América do Sul. A doutrina multiculturalista avança essencialmente a idéia de que as culturas minoritárias são discriminadas e devem merecer reconhecimento público. Para se realizarem ou consolidarem, singularidades culturais devem ser amparadas e protegidas pela lei. É o Direito que vai permitir colocar em movimento as condições de uma sociedade multicultural.

2. Entre universalismo e multiculturalismo

Mas, de que diferenças culturais nós falamos? Muitas vezes reduzidas à questão da etnicidade (condição ou consciência de pertencer a um grupo) ou, em alguns casos, reduzidas até mesmo à "questão racial", as diferenças culturais não concernem apenas aos particularismos de origem ou de tradição (religiosas ou lingüísticas).

As reivindicações se enraízam cada vez mais sobre no particularismo dos mores (preferências sexuais, por exemplo), de idade, de traços ou de deficiências físicas (obesos, cegos, paraplégicos). O multiculturalismo combate o que ele considera como uma forma de etnocentrismo, ou seja, combate a visão de mundo da sociedade branca dominante que se toma – desde que a idéia de raça nasceu no processo de expansão européia – por mais importante do que as demais. A política multiculturalista visa, com efeito, resistir à homogeneidade cultural, sobretudo quando esta homogeneidade afirma-se como única e legítima, reduzindo outras culturas a particularismos e dependência.

Um detalhe importante nesta discussão é que, em nossos dias, um cidadão raramente "esquece" sua condição particular para encarnar um pretenso universalismo. O universalismo combina dificilmente com as condições da modernidade. Com a liberação dos mores e a emancipação sexual, a vida privada foi maciçamente reconstruída revestindo-se de grande potencial político. Nesta perspectiva, identidade e individualidade quase se sobrepõem. Isto pode parecer paradoxal, mas a reivindicação cultural está claramente associada ao individualismo moderno, ao primado do "sujeito individual". Ela emana da subjetividade pessoal daqueles que se reconhecem neste ou naquele particularismo e resolvem se engajar coletivamente em reivindicações identitárias.

O debate de idéias entre monoculturalismo e multiculturalismo funciona, de certa forma, em duas vertentes de pensamento. Ele se organizou, primeiramente, em torno de uma querela de filosofia política norte-americana: os liberais, ou individualistas, sustentavam que o indivíduo é mais importante e antecede à comunidade. Liberais recusam a idéia de que direitos minoritários possam ferir a preeminência legítima do indivíduo. O comunitarismo ou coletivismo, ao contrário, acredita que os indivíduos são o produto das práticas sociais e que é preciso proteger os valores comunitários ameaçados por valores individuais e, principalmente, reconhecer as diferenças culturais.

Tal debate, contudo, já é coisa do passado. Pensadores como Charles Taylor e Michael Walzer avançaram posições mais nuançadas. Inúmeros teóricos acreditam que os direitos minoritários podem promover as condições culturais de liberdade potencial dos membros de grupos minoritários. Na Europa, este "multiculturalismo liberal" parece ter se imposto por falta de alguma idéia melhor. Abandonou-se, então, o modelo que prevalecia desde a Revolução Francesa e que propugnava o cidadão unificado.

Vejamos, num exemplo, como procede esta vertente: a sopa passada no liquidificador transforma tudo num todo homogêneo, no qual não se distinguem mais os elementos que a compõem. Apenas um paladar avisado poderá adivinhar, no sabor, cada um dos ingredientes. Na salada composta, por outro lado, cada ingrediente se distingue dos outros, conservando sua aparência, seu gosto e sua textura. Nos EUA, o mito do "melting-pot", ou seja, da encruzilhada na qual todas as culturas se fundem ao adotar o "american way of life" – jeito americano de viver –, sucedeu o modelo do mosaico, ou da "salada", imagem possível do multiculturalismo: uma justaposição um pouco heterogênea de grupos étnicos e minorias culturais coabitando num mundo de concordância.

3 As políticas multiculturais

Além do Canadá (desde 1982), vários países têm constituições multiculturais: Austrália, África do Sul, Colômbia, Paraguai. Mas foram os EUA que, antes de qualquer outro país, colocaram a luta contra a discriminação no centro de suas preocupações. No prolongamento da luta dos afro-americanos por direitos cívicos, militantes e intelectuais consideraram uma injustiça que as culturas minoritárias não acedessem a um mesmo patamar de reconhecimento do que a cultura dominante branca, saxônica e protestante. Em reação a esta "etnicização majoritária", na verdade, uma assimilação dissimulada – leia-se, o mito do "melting pot" – operou-se uma "etnicização das minorias". O reconhecimento público das identidades coletivas resultou, por sua vez, de redes políticas voltadas para a consolidação da ideologia do "politicamente correto".

Na Europa, as práticas multiculturalistas são ainda pouco desenvolvidas. O modelo do Estado-Nação afirmou-se no século XIX praticando uma política de redução de diferenças culturais e de assimilação de populações imigradas. Nos países europeus, apesar das importantes diferenças nacionais (na Inglaterra, por exemplo, está bem avançada a luta contra discriminações étnicas), o particularismo é percebido como uma divisão e uma regressão cultural. O multiculturalismo, por sua vez, é um desafio fundamental para a consolidação da União Européia. Sobretudo, quando lá se pergunta se a Europa irá optar por uma cultura comum ou por um regime multicultural constituído por um mosaico de nações.

Na França, por exemplo, as políticas de tratamento preferencial são aplicadas para combater as desigualdades socioeconômicas ou as desigualdades entre gêneros (homem-mulher). Lá, cada vez mais, a etnicidade já é reconhecida e respeitada nas práticas (ainda não, no Direito): são dadas subvenções diretas a associações étnicas, são criadas políticas em favor de imigrantes, existem Fundos de Ação Social voltados para a questão. O modelo da diversidade francesa foi comemorado no Campeonato Mundial de Futebol de 1998, quando os jogadores de origens diferentes (França, África do Norte e África Central) tornaram-se campeões do mundo. A imagem de uma equipe multiétnica fundiu-se com aquela de uma "equipe que ganha".

4. Os limites do multiculturalismo

Para vários autores, o multiculturalismo aparece como um mal necessário. Discute-se muito como aperfeiçoar o sistema, limitando seus efeitos perversos e melhorando a vida dos atores sociais. Em alguns casos, o multiculturalismo provoca desprezo e indiferença, como acontece no Canadá entre habitantes de língua francesa e os de língua inglesa. Nos EUA, esta militância só fez acentuar as rivalidades étnicas. Ao denunciar seus adversários, tais políticas terminam por estigmatizá-los e acabam, também, por dar uma dimensão étnica às relações sociais.

A pergunta a fazer é: será que os fins justificam os meios? O princípio da discriminação positiva se choca com as exigências de igualdade do Direito e à imparcialidade do Estado? Caminhamos no sentido da justiça social? A busca de uma igualdade real pode ser incompatível com os princípios de igualdade formal?

Sabemos que nem todos os membros das minorias são desfavorecidos e os que sabem aproveitar as vantagens são raramente os mais desfavorecidos. Por outro lado, existem grupos da população realmente desfavorecidos que não pertencem às minorias étnicas. Neste caso, todas as diferenças podem ser defendidas? Sabemos que há o risco de opressão do grupo cultural sobre seus membros: como proteger a minoria das outras minorias, os explorados dos excluídos? Por vezes, ocorre até contrário, pois foi invocando a noção de Direito que os brancos de origem holandesa defenderam o sistema do "apartheid". Muitos pensadores, entre eles Charles Taylor, autor de Multiculturalismo, Diferença e Democracia, acreditam que toda a política identitária não deveria ultrapassar a liberdade individual. Indivíduos, no seu entender, são únicos e não poderiam ser categorizados.

A quem cabe a legitimidade de atribuir uma identidade? Não é o indivíduo o único capaz de escolher a sua, ou as suas identidades de pertença? Mais ainda, quando pensamos que identidades individuais são construídas em oposição ao grupo de pertença. Os especialistas concordam sobre o princípio de que as diferenças culturais não podem colocar em causa os direitos do homem e do cidadão.

5. Novas perspectivas

Não podemos analisar tudo em termos de culturas. A denúncia das discriminações e as reivindicações pelo reconhecimento cultural parecem ter se sobreposto à luta de classes e à denúncia da exploração socioeconômica que caracterizaram a primeira metade do século na Europa, e na segunda metade, no Brasil.

Mas, na luta contra as discriminações, o esquema dominados/dominantes não é mais possível. Os conflitos sociais são cada vez menos óbvios, menos maniqueístas. Cada um de nós pode ser ao mesmo tempo discriminado e discriminador. Um operário pode ser discriminado socialmente, mas também discriminar como homem, como pai e como marido. Existe, hoje, uma oposição entre as políticas sociais e as políticas multiculturais. Os que são objeto de discriminação cultural são também os que mais sofrem as desigualdades socioeconômicas. Por trás da tensão entre brancos e negros, há, antes de qualquer coisa, a tensão entre ricos e pobres. Vale lembrar, ainda, que o reconhecimento de uma cultura minoritária não implica o fim de sua alienação socioeconômica. O grande desafio consiste em conciliar as políticas de reconhecimento e as de redistribuição.

Pesquisadores de todas as áreas insistem sobre a necessidade de construir uma verdadeira "educação intercultural". Apresenta-se, aí, a ocasião de um aprendizado democrático. É a idéia de uma democracia de mores proposta por Farhad Khosrokhavar, na qual a comunicação cultural é possível: democracia feita de respeito à alteridade cultural e de tolerância. É, também, a idéia de uma "democracia inclusiva", na qual as comunidades não se definiriam mais pela exclusão.

É também a vontade de viver junto que funda uma cultura e permite uma relativa homogeneidade social. Quando uma sociedade se diz multirracial, ela se bate, igualmente, contra a desigualdade racial. Taylor, por exemplo, definiu a democracia como a política do reconhecimento do outro, logo, da diversidade. Mais adiante, o debate sobre o multiculturalismo obriga também a redefinir o conceito de cultura, sobretudo, a alargá-lo para aí incluir um conjunto de diferenças comportamentais. As culturas são menos feitas de tradição do que de representações construídas pela história, suscetíveis de mudanças tal como vemos nas reivindicações de uns e outros.

Como já demonstraram o sociólogo Michel Wieviorka e o historiador Serge Gruzinski, o hibridismo e a maleabilidade das culturas são, igualmente, fatores positivos de inovação. Considerar a cultura como algo que não é variável, julgar sobre diferenças culturais é também marcar a cultura com um selo de autenticidade que não existe e fixá-la num molde único. Uma saída possível seria considerar as vantagens da mestiçagem cultural, este poderoso fator de mudanças, de criatividade e de invenção, e que não é objeto de nenhuma reivindicação. Mas o que dizer de mulatos que, na Bahia e no Caribe, desprezam os negros?

Foi se apoiando em suas raízes culturais que a ação dos negros brasileiros tomou a dimensão de um movimento social de massas. Nas ruas das grandes cidades brasileiras já é possível ler em muitas camisetas "100% negro!". Desde os anos 80, a questão racial está nos espaços públicos e teve início um debate interno sobre as representações coletivas, sua história, sua diversidade cultural e racial. A maior parte deles acedeu à consciência negra pela brecha da cultura popular. A música afro-brasileira e as escolas de samba tiveram aí um importante papel mobilizador. A busca da "pureza africana" acompanhou-se também de uma crítica feroz ao sincretismo. Finalmente, a aprovação de cotas para os afro-brasileiros na universidade e no funcionalismo público acabou por negar a fábula do encontro harmonioso entre as três raças. Durante muitos anos, os negros aceitaram a ilusão de que a mestiçagem poderia ser a solução para a discriminação racial, diluindo a cor em casamentos mistos. Mas a questão da raça está também ligada à da posição social: quanto mais sobem na escala social, mais os negros se tornam brancos.

O processo de reafricanização do Brasil talvez melhore o status social, artístico ou religioso de muitos de nós. Mudanças, contudo, dependem diretamente da redistribuição de renda e do fim das desigualdades imensas entre ricos e pobres. Aí, sim, estaremos prontos para construir uma democracia inclusiva e intercultural.


Bibliografia:

Para fazer este texto emprestei idéias à Stefania Capone, "Le candomblé au Brésil, ou l’Afrique réinventée", in Cultures – La construction des identités, Sciences Humaines, novembro de 2000, p.52-54 e sobretudo a Jérôme Souty, em seu artigo "Multiculturalisme: comment vivre ensemble" in Les grandes questions de notre temps, Sciences Humaines, dez. 2001, pp.78-82.

Os livros importantes sobre a questão são:

Charles Taylor, Multiculturalisme, différence et démocracie, Paris, Aubier, 1994.

Michel Waltzer, Pluralisme et démocracie, Paris, Esprit, 1997.

Will Kymlicka, Multicultural citizenship: a liberal theory of minirity rights, London, Clarendon Press, 1995.

Michel Wiewiorka et Jocelyne Ohana (dir.), La différence culturelle. Une reformulation des débats, Paris, Balland, 2001.

Serge Gruzinski, La pensée métisse, Paris, Fayard, 2000. (Edição em português: O pensamento mestiço. São Paulo, Cia. das Letras, 2001).


Fonte:

  1. www.ia.ufrrj.br/ppgea/conteudo/...2008.../Multiculturalismo_texto1.doc

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